Monday, February 27, 2006

Diario 3

O condutor buzinou violentamente enquanto praguejava ferozmente contra aqueles energúmenos que não andavam nem deixavam andar. Claro que a infindável fila de trânsito nem por isso se moveu mais depressa...
Na sua estação de observação, o extra-terrestre desligou o visor e deu início a mais uma entrada no seu diário de observações sobre o terceiro planeta:

- A religião destes seres é muito espalhada e parece que a levam muito a sério. Têm uns cubículos de profissão de fé nos quais se introduzem para participar em longas procissões que se deslocam lentamente durante longas horas. A fé é tão intensa que frequentemente ficam congestionados, ficando a sua fisionomia transtornada com os repentes tão fervorosos de fé. Esporadicamente retiram-se da procissão, entregando-se a outras actividades mas voltam a entrar na procissão mais tarde. A maioria dos seres faz parte de uma procissão pelo menos duas vezes em cada ciclo diurno e muitos deles consideram a participação nestes actos de fé como uma actividade solitária, apesar de outros haver que o fazem em grupo. Durante o ciclo nocturno existem alguns pares de seres que utilizam o cubículo religioso para praticarem uma espécie de fusão que deve corresponder a uma troca profunda de ideias sobre o bem espiritual que retiraram individualmente da participação na procissão durante o ciclo diurno que findou. Fim de registo.

Pensativo, meditando nas diversas formas que a fé podia tomar neste Universo, o extra-terrestre desligou o aparelho de registo e enfiou o dedo central (o quarto) na narina central (a quinta), adoptando a posição que a sua religião preconizava para a meditação transcendental...

Wednesday, February 22, 2006

O vampiro

O vampiro escondeu-se mais cuidadosamente na penumbra que a esquina do edifício criava, esforçando-se por se tornar indetectável à luz do luar. Observou com gula o vulto humano que se aproximava, avaliando pelo tamanho a quantidade de sangue que iria beber. Infelizmente, tratava-se, evidentemente, de um idoso que não lhe iria dar muito alimento, mas como já não conseguia uma presa já há algumas noites pensou que mais valia pouco sangue do que nenhum sangue.
Quando o velhote passou pela esquina onde se escondia, deu um salto, agarrou-o e cravou-lhe os dentes no pescoço. De imediato sentiu que qualquer coisa não estava bem. Sentiu as forças a escaparem-se-lhe, como se tivesse sido envenenado. Fraco, caiu no chão, com a não-vida a escoar-se, a morte definitiva a tomar conta daquele corpo já tão antigo.
O velhote, fugiu a correr, tão depressa quanto conseguia, sem saber o que lhe tinha salvo a vida, o que o tinha livrado daquele monstro tão aterrorizador. Enquanto corria pensava para si mesmo: Bolas, se moresse esta noite não tinham servido de nada aquelas injecções de extracto de alho, que me custaram tanto a tomar, para retardar o envelhecimento.

Partida de Carnaval

Era carnaval e achei que devia pregar uma partida a um amigo.
Bom de facto estava a utilizar este argumento para levar a cabo uma pequena vingança há muito devida. Já era pelo menos a 4ª ou 5ª vez que quando saíamos à noite, o meu amigo Ronaldo (Ron como ele queria ser chamado) desrespeitando todas as regras da boa amizade, me roubava a miúda que eu queria. Sempre que sabia qual era a que eu tinha escolhido nessa noite, pimba, aí ia ele atirando todo o charme para cima dela e conseguia sempre dar-lhe a volta. Desta vez tinha decidido vingar-me... quer dizer pregar-lhe uma partidita de carnaval...
Fui até ao pequeno quiosque, junto à estação do metro, onde recepcionavam os anúncios para o jornal e usando toda a minha imaginação escrevi “OLÁ EU SOU O RON E GOSTAVA MUITO DE CONHECER OUTROS RAPAZES/HOMENS COM OS QUAIS PUDESSE FAZER RON RON, E MOSTRAR-LHES O GATINHO QUE HÁ EM MIM” de seguida escrevi o nº de telemovel do meu amigo Ron e entreguei o papel à rapariga que olhando para o texto que eu tinha escrito me olhou de alto a baixo, tentando tirar-me a pinta, ao mesmo tempo que me perguntava se o anúncio era para a secção de “convivios”. Depois de pagar à moça, fui para casa e esperei o resultado da minha partida.

Nos dia seguinte quando fomos sair à noite já o Ron apareceu com uma cara muito chateada e justificou-se dizendo que devia haver um “libelinha” qualquer que tinha o telemovel quase igual ao dele e que por engano tinha escrito o dele num desses anúncios de jornal, porque já era pelo menos a 9ª vez que lhe ligavam gajos a tentar combinar encontros com ele. Nessa noite ele nem sequer conseguiu roubar-me a miúda que eu tinha escolhido, acho que nem sequer conseguiu conquistar nenhuma - o gajo estava mesmo mal.
Nos dias seguintes as poucas vezes que o Ron apareceu, dizia sempre que nunca tinha imaginado que houvesse tanta “libelinha” desesperada, porque todos os dias recebia centenas de telefonemas.
Cada vez o fui vendo menos vezes até que passado cerca de 1 mês sem lhe pôr a vista em cima, lhe telefonei a combinar uma saída à noite, imaginando eu que o efeito da minha pequena partida já tivesse passado.
Quando à hora combinada o vejo entrar no café do Sr. Zé, confesso que não estava preparado para aquilo. Lá vinha ele, cabelinho pintado de louro, óculos escuros à moda a servir de travessão para prender o cabelo, camisinha às flores rosa e amarelas, calcinhas brancas, bem cintadas e sapatinhos a condizer, naquela altura pensei que só faltava mesmo começara a tocar o “Y.M.C.A. dos Village people”. O Ron chegou ao pé da malta e disse – “Olá passarinhos... vamos”...Moral da história ... nunca dês o teu telemovel a ninguém

Tuesday, February 21, 2006

O gene modificado

Tudo começou com as teorias do Dr Aubrey sobre o gene do tamanho das espécies. Este investigador tinha descoberto uma correlação entre o tamanho dos seres de uma espécie e a sua longevidade. Uma série de ensaios permitiram-lhe provar que seres de menor porte na mesma espécie tinham um tempo de vida maior.A seguir tudo se passou numa catadupa de acontecimentos com uma série de centros de investigação a prosseguir esta descoberta. Primeiro um grupo de investigadores da África do Sul que provaram que a cor escura da pele conduzia a um maior tempo de vida, relacionando esse facto com a menor exposição aos raios ultravioleta do sol.

O passo seguinte foi a inibição dos genes que definiam o caracter ”pele clara” nos seres humanos. Depois os Portugeses de um instituto estatal, descobriram por observações levadas a cabo no instituto, que quanto maior a inactividade dos seres maior a sua longevidade. Com a modificação dos genes responsáveis pela mobilidade do ser humano, veio um novo aumento do tempo de vida. E assim continuaram a inibir ou modificar genes de modo a prosseguir a meta da vida eterna. Tudo isto não se passou em séculos como seria nos tempos antigos, na realidade bastaram alguns anos, porque a tecnologia existente assim o permitia.
Eu que aqui vos narro este passado recente, sou o último, ou um dos útlimos que escolheu não ser imortal e por isso achei por bem (antes de me apagar) deixar aqui o aviso a vós visitantes da nossa terra, para terem cuidado... “tenham muito cuidado”.
A terra apesar de parecer inabitada e pejada de rochas negras está na realidade cheia de seres humanos, aliás posso-vos dizer que não andem aos pontapés às pedras e não é por haver um ser humano debaixo de cada uma delas... é que cada uma delas é um ser humano. Elas são os que escolheram ser eternos.
(Banda Sonora: I am a rock – Simon & Garfunkel

Friday, February 17, 2006

Metafora

Talvez um quadro de Monet ?
Ou um verso de Gedeão ?
Uma melodia de Mozart,
Ou uma singela canção?

Talvez a teoria de Gallois?
Talvez a Vénus de Milo?
Ou uma frase bem escrita,
Ou as pirâmides do Nilo...

Impossível de comparar
À mais fina tecnologia
Pois esta, apesar de bela,
Tem uma beleza fria.

Não, não consigo!
Cheguei ao fim, desisti !
Nada mais posso escrever ...
Nada se compara a ti!

Thursday, February 16, 2006

It's raining cats and dogs

Na rádio do carro tocava uma música calma e a sonolência, como sempre, tinha tomado conta de si. Estava a chover “como o caraças” ou como diriam os Ingleses “cats and dogs”. O carro estava praticamente parado, só a trepidação e o passar da água lhe davam a sensação de movimento.

De repente sentiu algo a bater com força contra o tejadilho e depois logo de seguida contra as portas. Ficou em pânico, 1º pensou que tinha atropelado alguém ou algum animal, mas o carro estava quase parado!!!
A suspeita de que estava a ser vítima de um daqueles malucos que começa a bater e destruir tudo o que o rodeia tomou conta de si, e a sua única reacção foi “tenho que sair daqui”.
Abriu a porta do carro sem conseguir ver nada por causa da água que caia abundantemente e gritando tão alto quanto podia por socorro começou a correr desordenadamente.
O homem da lavagem automática perplexo com aquele maluco que tinha saído a meio da lavagem do carro, a gritar por socorro, só teve tempo para parar a máquina, carregando no botão vermelho de emergência. Não sem antes as enormes escovas laterais terem dado uma bela pancada no individuo tresloucado que tinha saído da viatura.
Depois de devidamente acalmado e socorrido voltou a entrar no seu carro e saiu da máquina de lavagem automática. Estava a sentir-se tão estúpido e tão ridículo que decidiu que tinha que ir beber um café, mas a chuva nunca mais parava. De repente voltou a ouvir um barulho de algo a bater no tejadilho e momentaneamente teve aquela sensação de “déja-vu”… saiu do carro, mas nem um metro tinha andado quando foi atingido por um gato que tinha caído do céu, logo de seguida por outro e por outro e depois por um cão… afinal estava a chover “cães e gatos”

Nada é tão seguro como a Morte e os Impostos

Naquele dia custou-lhe chegar ao emprego. Sentia dificuldade em respirar, os pulmões pareciam não conseguir oxigenar o sangue que fluía pelas suas veias, o que o deixava tonto e ofegante.
Chegado à sua secretária, foi efusivamente recebido pelo sintetizador de voz da sua unidade computacional, que o informou de imediato que o seu chefe queria falar com ele. Preocupado, sempre com dificuldade em respirar, levantou-se e dirigiu-se ao gabinete do seu chefe. Ao aproximar-se, viu, através da divisória translúcida que separava o gabinete do resto do mega-escritório, que estavam outras pessoas no gabinete do chefe. Bateu à porta e esperou que o sinal luminoso passa-se para “entre”. Recebido o sinal verde, rodou o maanípulo e entrou, com a sensação de peso na respiração a piorar com o receio de que algo de grave se passasse.
O Chefe levantou-se da cadeira com ar pesaroso enquanto dois dos indivíduos que se encontravam em pé se deslocavam de forma a interceptar o caminho para a porta, como se lhe quisessem impedir a retirada.
- Tenho más notícias - disse o Chefe - estes senhores estão aqui para falar consigo acerca de um assunto muito grave.
Já muito assustado, recuou um pouco enquanto o que parecia ser o que mandava naquele grupinho se virou para ele e disse, com um sorriso desagradável nos lábios:
- Lamento dizer-lhe mas vamos ter que lhe confiscar a casa, a família e o emprego. - e, envolvendo-o num invólucro estanque ao ar, acrescentou: - O Senhor esqueceu-se de pagar o imposto sobre o ar que respira e portanto acabou de inalar a sua última golfada de ar que será paga ao estado com o dinheiro que se obtiver da venda dos seus bens.
Já a sufocar ainda tentou dizer que tinha o registo do envio do dinheiro pelo correio na mala, mas caiu redondo no chão, morto por falta de ar sem conseguir dizer palavra.
Dois anos mais tarde, os correios indemnizaram a família, entretanto comprada por outro indivíduo, no valor do imposto que se tinha extraviado...

Tuesday, February 14, 2006

Maionaise


Já não havia tempo para se esconderem. Os passos nas escadas estavam demasiado perto, era hoje… iam ser apanhados em flagrante. Com o abrir da porta e a figura da sua mãe à entrada acabaram-se 3 meses de encontros furtivos, mas muito deliciosos.
A mãe dela quando a viu a tentar tapar o peito com o lençol, gritou – “Malditos sejam… a partir de hoje nunca mais vão poder juntar-se, tal e qual como o óleo e o vinagre podem estar no mesmo prato mas não formam um só”, depois mais resignada disse “ e tu menino sai”.

A mãe dela “medium” de renome, bruxa nas horas livres nem se apercebeu do que tinha feito. Na realidade, para ela a sua filha tinha fugido com o namorado, mas na sua despensa a verdade era outra. Havia duas novas garrafas na 3ª prateleira a contar de cima, uma de vinagre com um formato curvilíneo, um rótulo vistoso e um vinagre de paladar apetecível e outra garrafa mais alta cheia de óleo. E ali ficaram as duas garrafas uma ao lado da outra, viam-se todos os dias, todo o dia. Era doloroso, não se conseguiam tocar e mesmo quando iam servir à mesa, sabiam que juntos estariam no prato mas que nunca poderiam ser um só. Ele já tinha pensado em rançar, para ver se os ésteres formados lhe permitiriam tornar-se miscível com o vinagre, mas tinha muito medo da transformação afinal que parte de si é que se alteraria.
Assim viveram 2 meses, até que um certo dia o novo namorado da Sra. Plum os foi buscar à despensa. Ele sentiu-se atirado para dentro de um recipiente onde já estavam 2 ovos batidos … a sensação foi agradável, mas o melhor estava para vir. Quando sentiu o fio de vinagre começar a cair no meio deles (óleo e ovos) começou a sentir que afinal tudo ainda era possível, o seu grande amor estava finalmente com ele mais uma vez, e “mmmmaaaaaannnnn” como foi bom, houve muita química presente entre aqueles 4, mas sobretudo entre ele e ela.
O novo namorado da Sra. Plum, muito desgostoso resmungou - porque é que esta porcaria às vezes não resulta… lá vai mais uma dose de maionaise para o lixo.

Friday, February 10, 2006

A Rainha do Lago Constance

Nesse dia tinha decidido ir fazer a sua ginástica à beira do lago Constance, há já muito tempo que não ia para aquelas bandas e pensou em aproveitar ao máximo a belíssima paisagem. Quando estava a fazer a sequência de flexões de pernas contemplando a calma do lago pareceu-lhe ver a imagem de uma belíssima mulher submersa dentro da água límpida do lago a uma distância de uns 6-7 metros. Olhou com mais atenção e verificou que de facto ela estava lá, parecia sorrir para ele. Era lindíssima, olhos azuis, cabelo castanho longo e uma figura esbelta, da qual se conseguia aperceber com alguma dificuldade pois o trajo antiquado que usava, dissimulava as formas do seu corpo. Chamou-a várias vezes para captar a sua atenção, mas ela provavelmente por estar submersa não conseguia ouvi-lo. Lembrou-se de acenar, e pareceu-lhe que ela também tinha mexido o braço como que para responder ao seu aceno, mas nessa altura uma corrente do lago turvou a água e quando a procurou outra vez, já não conseguia avistá-la. Procurou desesperadamente, mas não a conseguiu ver outra vez. Pensou deitar-se à água para procurar, mas não sabia nadar, além disso pelo sorriso que ela tinha na cara não estava de certeza aflita. Seria ela a famosa dama do lago Constance?

Correu para casa, ligou o computador e mesmo antes de tomar banho pesquisou na Internet pela lenda da dama do lago Constance. Teve alguma dificuldade em encontrar qualquer coisa sobre o assunto, porque na realidade a lenda falava de uma rainha e não de uma dama do lago, mas após alguns minutos encontrou o que pretendia, e após leitura cuidada da informação que colectou chegou à conclusão que deveria ter sido mesmo a rainha do lago que avistara. A lenda dizia que o homem que a conseguisse tirar do lago teria a fortuna de ser o homem mais feliz do mundo. Ficaria eternamente junto a ela.
Decidiu ir procurá-la novamente, mas desta vez ia preparado, levava uma lanterna e uma vara comprida para esticar até ela, para que ela pudesse agarrar e vir até si. Depois de lá chegar dirigiu-se para o local onde antes a tinha avistado e esteve à vontade mais de 3 horas à sua procura, até que viu novamente a esbelta figura. O seu coração começou a bater fortemente, enquanto molhava as pernas até aos joelhos entrando na água fria do lago. Esticou a vara na direcção da sua rainha, mas depressa se apercebeu que ela ainda não o tinha visto, pois movia-se de um modo sereno ao sabor das correntes. Na sua pesquisa tinha lido que à rainha do lago chamavam também senhora das correntes, porque dizia a lenda, ela comandava as correntes do lago. Por isso mais uma vez acenou para a chamar, fazendo a vara bater na água e provocando algum turbilhão para lhe chamar a atenção. Quando finalmente ela se começou a deslocar na sua direcção deslizando serenamente ao sabor da corrente e se aproximou que chegue para ele a alcançar verificou que a sua aparência estava modificada, estava com uma cor estranha, e não tinha tão boa aparência como da primeira vez.
Com algum esforço puxou-a para fora de água e rapidamente a largou outra vez, quando verificou que se tratava de um manequim em plástico. Mas o seu braço tinha ficado preso no braço saliente do manequim e foi arrastado para dentro do lago. Tentou desesperadamente soltar-se mas não conseguiu. Foram, ele e o manequim, arrastados para o meio do lago e ali ficaram… juntinhos … inseparáveis.

Wednesday, February 08, 2006

O criador de vermes


Só recebia visitas, de quando a quando e quem lá ia geralmente não voltava. Dizia a quem lá ia, com muito orgulho, que era o único criador de vermes daquele tipo. Quem o procurava eram amantes da pesca que sabiam que aquele tipo de verme era garantia de uma grande pescaria.

A todos fazia questão de se gabar de possuir a maior colecção de cartas coleccionáveis de um jogo, que a todos tentava impingir sem sucesso. Sempre que alguém lá ia, começava por tentar interessar a pessoa no jogo (o que geralmente era um fracasso), tentava depois propor um jogo de experiência (por vezes até chegava a oferecer o valor (incalculável) correspondente aos vermes que a pessoa ia comprar). E finalmente quando já tudo o resto tinha falhado, fazia questão de mostrar a sua colecção.
Todos reparavam que a partir da folha 143 todas as restantes folhas com saquetas onde guardava as cartas estavam imaculadas, como se raramente fossem mexidas, enquanto as primeiras 143 folhas se apresentavam sujas e sebosas.
Nesse dia, e após 17 dias sem avistar ninguém, deslocou-se “à sua parte do mundo” um jovem que queria comprar os afamados vermes que ele criava com tanto cuidado e de um modo que mantinha secreto.
A rotina foi a mesma. Quando já estava a mostrar a colecção de cartas, e o jovem lhe fez a mesma pergunta de sempre “porque é que a partir daqui as folhas estão tão limpas?” respondeu calmamente “já vai perceber, meu caro” e desviou-se um pouco para pôr uma música. Chegados à folha 143 o rapaz reparou que nessa folha havia uma única carta na saqueta central da folha e aproximando os olhos da folha suja tentou ler o nome da carta … “Criador de vermes” o rapaz reparou como era espantosa a semelhança da fisionomia da imagem retratada na carta com a do seu interlocutor. Foi aliás a última coisa que ele reparou, pois a seguir sentiu uma enorme pancada na cabeça. Já não teve tempo para ler o texto que estava escrito por baixo da imagem e que dizia “ Foge enquanto podes porque ele vai matar-te... e utilizar a tua cabeça como caixa para criar vermes, e as tuas entranhas para os alimentar”.

Tuesday, February 07, 2006

The magic-lick

Este é um pouco extenso. Não sei se funcionará....

A banda acabou a actuação e começámos a arrumar os instrumentos. Tinha sido uma noite boa. Durante o último tema, tinha havido um momento em que quase senti que tinha conseguido! Olhei para os meus companheiros musicais e pareceu-me ver um sorriso trocista nos lábios do baixista. Quando me viu olhar para ele disse, já a sorrir abertamente:
- Não me digas. Durante este último solo sentiste que estavas quase a conseguir o magic-lick...
Era uma brincadeira recorrente entre eles, esta minha procura pelo magic-lick. Mas para mim não era brincadeira nenhuma. Estava sinceramente convencido que se conseguisse encontar a combinação correcta de notas, ritmos e silêncios haveria de conseguir o lick perfeito. E ele seria mágico levar-me-ia aonde eu quisesse ir. Levar-nos-ia a todos! Já não era a fama ou a fortuna que contavam, era só a pureza e a felicidade que estariam contidos naquela linha perfeita de guitarra. E hoje tinha estado tão perto... Tinha que continuar a estudar, continuar a aperfeiçoar-me, continuar a exceder o que já tinha feito. Talvez em breve conseguisse obter o magic-lick?
Ao ver a minha expressão de desapontamento, o baterista deu uma cotovelada no baixista e disse:
- Estás cada vez melhor! Acho que já não deve ser possível ninguém tocar guitarra melhor do que tu! Neste último solo tiveste-os todos na mão. Eu até me passei...
Olhei-o com um sorriso de agradecimento e disse-lhe que ele era um gajo porreiro. Mas no meu íntimo sabia que ainda não tinha sido desta...
Saímos do bar onde tinhamos actuado, arrumámos tudo na nossa carrinha e dirigi-me para casa, despedindo-me do resto da banda, pois eles iam levar o material (a minha guitarra incluída) para o armazém onde o arrumávamos.
Caminhei pelas ruas, distraído, sempre com aquela linha de guitarra na mente, nos lábios, nos dedos, em todos os recantos dentro de mim. Tinha sido quase, faltavam só umas notas, umas pequenas alterações de ritmo, sentia que estava mesmo quase! Quase que podia sentir e ouvir o magic-lick. Tinha que estudar mais, tinha que melhorar mais ainda a técnica! E aquelas notas, que me pareciam imperfeitas, mas quase-perfeitas ao mesmo tempo, não me abandonavam nem um momento.
Passei por um pedinte com o seu prato de plástico - onde se encontravam já algumas moedas - no chão à sua frente. Ia tão distraído que, eu que geralmente não dou esmola pois sou contra a indigência, tirei umas moedas do bolso e dexei-as cair no prato do mendigo. E ao caírem, o seu tilintar confundiu-se com as notas que me ressoavam no cérebro e foi como se um interruptor tivesse sido ligado! Era isso, tinha acabado de ouvir o magic-lick! Tinha conseguido! Só faltava conseguir tocar aquilo na guitarra!
Desatei a correr feito louco, maldizendo-me por não ter trazido comigo a minha fiel guitarra. Tinha que chegar a casa depressa, não me podia esquecer daquela frase perfeita! Atravessei ruas sem olhar e sem abrandar, arrancando imprecações dos condutores que tinham que travar abruptamente, atropelando os peões, albarroando tudo o que se metesse no meu caminho. Tinha que chegar a casa para ver se conseguia tocar na guitarra o magic-lick! Naquela noite, a Musa dos músicos devia estar a proteger-me, pois deveria ter morrido mais de cem vezes naquele percurso, se as regras estivessem em vigor para mim.
Entrei desabridamente pela porta de casa e fui “atacado” pelo meu querido cão (um grande Serra-da-Estrela) que se atirou a mim cheio de contentamento em ver-me. Parei para tomar fôlego e... esquecera-me do meu lick! Não, não podia ser! Durante aquela corrida desmedida, tinha-se evaporado da minha mente! Oh não! Ter tido a perfeição ao alcance e tê-la deixado escapar.
Maldizendo o meu destino, baixei-me para fazer umas carícias ao meu companheiro, que desconhecendo os meus azares, abanava a cauda e pedia brincadeira. Ao fazer-lhe uma festa, a coleira metálica que usava ao pescoço tilintou e... magia, lá estava outra vez o magic-lick. E tinha sido o meu querido Sam, com a sua fome de brincadeira que mo tinha devolvido. A transbordar de alegria, abracei-o, sem querer deixar de recompensar aquele cão maravilhoso que para além de excelente companhia me tinha devolvido o meu lick! Corri, aos pulos, para a sala onde tenho a minha guitarra e comecei a tocar o meu lick. Bolas, não conseguia tocar o que tinha acabado de ouvir. Qualquer coisa me estava a escapar! Devia ser uma falha da minha técnica. O lick existia, eu só não o conseguia executar! Desanimei! Era demais! Ter tudo ao meu alcance e tudo perder... Deixei-me cair, desalentado, no sofá e passei as mãos sem pensar pelas cordas da minha amiga guitarra, pensando naquelas notas perfeitas. Da janela, chegaram-me os risos de umas crianças que brincavam no jardim e os meus dedos reagiram inconscientemente a esse estímulo, tentando emular aqueles risos com as cordas, ao mesmo tempo que tocava distraidamente as mesmas notas que tinha tocado anteriormente.
E foi o extâse! Tinha conseguido. Aquele lick que me tinha fugido tantas vezes, que a minha técnica não tinha conseguido capturar estava ali, saindo dos meus dedos enquanto tocavam distraídos, alheios à minha vontade. Foi aí que percebi: o magic-lick não era uma questão de técnica, não era uma questão de esforço ou treino. Não que este não tivesse sido importante pois de outra forma nunca teria podido tocar as notas que estava a tocar, mas era sobretudo uma questão de sentimento. Daí que fosse ao dar as moedas ao mendigo, sem pretender nada em troca (nem sequer a salvação eterna), ao fazer festas no meu querido companheiro de quatro patas ou ao ouvir os risos das crianças que ele me tinha soado no cérebro.
Agora percebia tudo! Devia tocar sempre com o corpo todo, com o sentimento todo e não só com as mãos, o cérebro e a mestria técnica que se adquire com o treino. E continuei a tocar aquela linha na guitarra, que enchia a minha casa, enchia a minha alma e transbordava para o resto do mundo, enchendo-o com a música perfeita, inadulterada que iria desse dia em diante fazer as delícias de quem me quisesse ouvir e de quem a quisesse tocar.

Friday, February 03, 2006

Esquecimento

Acordei de manhã cedinho com uma estranha sensação de leveza. Não percebia porque me sentia tão leve. Era como se não tivesse peso nenhum... eu que nem estava a fazer dieta! Ao tirar um braço para fora dos lençóis, vi que estes se levantavam e esvoaçavam como se não tivessem peso, também. Surpreendido, olhei em volta e vi que todos os meus pertences esvoaçavam, entrechocando-se no ar. Só então me lembrei: - Bolas, esqueci-me de pagar a conta da Gravidade!