Friday, December 14, 2007

Morcegos



Quem ouvisse aquela guinchadeira a meio da noite, junto do celeiro abandonado da velha quinta, ia de certeza imaginar uma cena horrível. Mas na realidade era apenas uma família de morcegos que tinham acordado e estavam a dialogar uns com os outros.
Aquele correspondia já ao 3º treino que os filhotes tinham sob supervisão dos pais, e seria, em princípio o último antes de poderem começar a sair sozinhos e procurar o sangue que tanto os deliciava sem ajuda dos pais.
A tarefa era fácil, para o filho mais velho então era quase trivial já. Sair em voo e o mais rapidamente possível voltar após ter bebido uma porção de sangue sugada a um qualquer animal que nas redondezas se encontrasse.
A mãe morcego visualizava no escuro o voo, enquanto o pai morcego esperava pacientemente a volta dos seus filhos que ao aterrarem na viga mais alta do velho celeiro deveriam dizer como e onde tinham obtido o precioso líquido. Para confirmar o sucesso da missão o pai analisava o pêlo dos filhos para verificar a existência de sangue.
O mais velho saiu após ordem pai. Nem 30 segundos volvidos, já ele aterrava no seu poiso e orgulhoso guinchava - vaca a 7 metros da porta do celeiro, mordida no pescoço.
O pai orgulhoso virava-se para a mãe e confirmava o sucesso com um aceno de cabeça.
De seguida a irmã do meio saiu e 43 segundos depois voltava aterrando com algum nervosismo e guinchou – rato a 2 metros da manjedoura, esventrado e completamente sugado. O pai viu a farta mancha de sangue junto da boca e que se estendia até perto dos olhos da sua filha e orgulhoso (uma vez que achava que ela era dos 3 a mais metódica) confirmou com a mãe o sucesso deste voo.
Finalmente mandou arrancar o filho mais novo, que passados 25 segundos voltava aterrando de uma forma desengonçada e baloiçando um pouco antes de pousar definitivamente. Perante a mudez estranha do seu filho o pai começou a analisar o pelo do filho temendo já, que tivesse sido (como anteriormente tinha acontecido) mais uma missão falhada. Com grande espanto seu verificou que o filho tinha várias manchas de sangue sendo a maior tão grande que ia desde a boca até ao topo da cabeça. Orgulhoso e sem caber em si, guinchou para a mãe confirmando o sucesso do voo com um aceno de cabeça.
Após alguns segundos o filho mais novo conseguiu finalmente sair do estado letárgico em que tinha chegado (estado aquele que os restantes morcegos tão bem conheciam de quando enchiam demais o estômago com sangue, provocando aquela dormência típica de quem tem a barriga cheia de mais) e guinchava atrapalhadamente – porta do celeiro, cabeça partida e asa esquerda rasgada no prego que segura a corda do balde.

Monday, October 29, 2007

Sorte ou azar?

O homem tropeçou no chão e bateu com a cara na terra húmida. “Raio de azar” - praguejou, indisposto pela continuada falta de sorte - “Só a mim...”
O jovem abriu, no quintal, o presente do pai e quedou-se, maravilhado, a contemplar o arco de tiro desportivo que lhe tinha sido oferecido. “Uau, um arco a sério” - pensou. - “Agora vou poder praticar tiro ao arco... Vou experimentar aqui no quintal onde não posso partir nada...”
O homem levantou-se, sempre praguejando entre dentes, e levantou os olhos para o Céu, dizendo com um olhar acusador “Porque me persegues? Tinhas que me fazer cair? É pedir muito que pares um bocadinho de me perseguir e que me deixes chegar limpo ao trabalho? Que mal te fiz eu?” Depois, lamentando-se enquanto prosseguia, acrescentou “O que eu não dava para poder voltar atrás cinco minutos e conseguir não cair para ficar limpo...”
O rapaz esticou o arco, sentindo o seu poder, a sua força, e ajustou uma seta apontando para o muro de betão onde o embate da seta não causaria grande dano. Deixou a seta partir e desiludido pensou - “Ainda tenho mesmo falta de pontaria” - enquanto a seta passava um bom metro acima do muro.
De repente o homem sentiu um tontura e viu-se de novo no lugar onde caíra, 20 metros atrás e só teve tempo para pensar “Sim, consegui, Ele ouviu-me, finalmente tive sorte!” antes que a seta, disparada pelo arco do rapaz, ainda pouco experiente, se viesse cravar na sua cabeça, no local em que esta não estaria se ele tivesse caído como inicialmente, matando-o instantaneamente...

Wednesday, September 26, 2007

Sextas à noite.


Aquele era de certeza um ritual muito antigo. Sexta feira, 22 horas e ali estavam aqueles 4 amigos na mesa do canto, a fumar, beber umas cervejolas e mandar piropos a todas as "gajas" que passavam. Envergavam os seus blusões de cabedal com o orgulho típico de “mottards” que eram.
Nesse dia a nova empregada de mesa foi entregar a 1ª rodada à rapaziada e logo ali se percebeu que algo ia mudar.
Com um piropo o chefe do grupo pôs de rastos a empregada... que lhe respondeu com um olhar capaz de derreter o iceberg que mandou abaixo o Titanic e os 3 companheiros viram-se na terrível situação de beberem as restantes rodadas sózinhos enquanto o chefe tratava de uns “negócios”.

A partir daí tudo mudou. Na semana seguinte em vez do amigo, viram-se a braços com a notícia que ele ia ficar 2 semanas sem aparecer porque tinha casado e ia em lua-de-mel para Paris... – Paris?????- Paris... França????...Terra dos emproados dos Franceses...!!!!
Ao fim dessas 2 semanas apareceu, mas já não quis beber as 5 rodadas da praxe porque a mulher lhe tinha pedido para ele não beber tanto.
Na semana seguinte, já quase nem bebeu e tossiu quando o companheiro lhe ofereceu um cigarro para fumar, acusando num tom reprovativo...- Isso faz-te mal, pá. Eu cá deixei-me disso-.
Na outra semana apareceu sem casaco de cabedal, envergando uma polo toda catita e mais uma vez para supresa dos 3 amigos se justificou dizendo que era para satisfazer a sua princesa.
Mais uma semana e, em vez da grande Harley que costumava trazer para o encontro de 6ªs à noite veio de carrinho, um daqueles carrinhos tipo “smart”.
Os companheiros já nem sabiam o que fazer, iam tentando levar tudo na desportiva, mas estava a ser complicado lidar com aquele “aprumadinho”.
Até que, na semana a seguir, para grande surpresa viram outra vez parada à porta (sem cuidado nenhum como era habitual) a grande Harley e ainda mais surpresos ficaram quando lá dentro encontraram o seu amigo vestido à boa velha moda e já a deitar abaixo a segunda cerveja. Aproximaram-se dele contentes mas receosos ao mesmo tempo e perguntaram – Então... está tudo bem?- Ele deu uma gargalhada sonora e disse – Estou de volta, ela deixou-me vejam lá que aquela "#§$%&" me disse que eu mudei.

Friday, September 21, 2007

E Depois...


Estava quase a terminar a obra de toda uma vida; ordenar, catalogar e cuidar dos mais de 2 milhões de livros da biblioteca municipal.
Deveria ser hoje que inventariava e tratava do último livro isso deixava-o confortado porque tinha ansiado por esse momento quase toda a sua vida. E assim foi, às 20h43m do dia 28 de Fevereiro de 1980 terminou a grande tarefa.
O médico que registou a sua morte às 20h57m, depois de ler o curto bilhete que dizia “E agora? ... que fazer?”, escreveu na certidão de óbito “ Causa da morte :Suicídio”, e olhando para o corpo pensou “grande maluco... este estava mesmo senil”.

Thursday, June 14, 2007

A cereja no cimo do bolo

De onde estava conseguia vislumbrar aqueles que deviam ser os lábios mais apetitosos que alguma vez tinha visto.
Carnudos, sensuais, pintados de um vermelho bem quente, muito bem delineados, intensos.
A boca levemente entreaberta (como a de quem suga um liquido) deixava antever uns dentes de um branco imaculado, que se podia dizer que representavam a cereja no cimo do bolo.
Pensou então - Sinto-me derreter, ...mas também ... podia morrer agora que já ia feliz.

E assim foi... a rapariga depois de ter acabado de beber a coca-cola, trincou delicadamente o cubo de gelo e apreciou cada segundo de frescura que este lhe proporcionou.

Thursday, June 07, 2007

Histórias para crianças... ou talvez não

Os sete anões iam para casa, ao encontro da sempre jovem e eternamente bela Branca de Neve. Esta esperava-os pacientemente, com uma bela refeição que tinha acabado de confeccionar. Até o Zangado ia menos zangado pois era um dia solarengo, o trabalho não tinha sido muito árduo mas tinha sido compensador e tudo corria indescritivelmente bem.
Espantado, o Sabichão parou, apontou para uma figura que passou por eles a correr muito depressa e exclamou:
- Olhem, é o Gato das Botas! Porque irá a correr assim?...
Antes que tivesse tempo de acabar a frase, um gigantesco pé do GIgante abateu-se sobre os anões, esborrachando-os todos sem escapar um.

Moral: Se virem pasar o Gato das Botas fugindo a correr, fujam ainda mais depressa do que ele.

Wednesday, June 06, 2007

Amor à primeira vista

Ela olhou para ele. Tinha um aspecto tão forte, e ao mesmo tempo tão suave... Não conseguia esperar por sentir a sua carícia, queria sentir o seu toque forte e firme. Estava apaixonada, não valia a pena resistir.
Entrou na loja e comprou o sapato, saindo com ele já calçado.

Friday, June 01, 2007

Um dia perfeito

Calmamente prostrou-se no solo aproveitando os raios de sol que enchiam as redondezas.
Era o seu local favorito e ia ali sempre que podia. Adorava sentir o sabor das pequeníssimas gotas de água na boca e o melhor de tudo era o ruído da água a bater na água. Era reconfortante e relaxante o ruído daquela pequena cascata.
Ali estava ele a aproveitar aquele momento perfeito e na tentativa de o tornar mais perfeito, pensou no que poderia melhorar e lembrou-se de como certas pessoas iriam logo afirmar que para ser ainda mais perfeito aquele momento exigiria um cigarro.

Com esta lembrança veio a memória de todos os seus amigos e familiares que tinham sofrido e morrido por causa desse mau hábito. Não conseguia entender o porquê, quando já tinha ali a perfeição. E mais ainda, não conseguia entender também quem além de fumar ainda por cima tentava levar os outro a fazê-lo.
No meio de tudo isto distinguiu um ruído que apesar de familiar mexeu consigo, era uma mosca. Pronto estava tudo estragado, agora ia de certeza pôr-se para ali a esvoaçar e já não iria conseguir usufruir daquela paz. Tinha que fazer o que tinha que ser feito. Com alguma calma desviou o olhar para a trajectória da mosca e rapidamente a conseguiu apanhar. Não era das mais saborosas, mas já era qualquer coisa. Lançou-se à água e nadou para longe para ao pé dos seus companheiros, meditando ainda sobre a paranóia das pessoas que gostavam de ver um sapo a rebentar com um cigarro na boca.

Wednesday, January 10, 2007

Tragedia de outro mundo

Amlira olhou para o céu e, de imediato, um olhar de preocupação tomou conta da sua face. Provavelmente ia chover... E os seus cultivos que estavam desprotegidos das intempéries! “Tenho que voltar para casa” pensou,”urgentemente!”.
Juntando a acção ao pensamento estugou o passo e, com determinação, tomou o caminho da sua propriedade. A meio do caminho, que estava a tomar-lhe muito menos tempo que o usual dada a rapidez do seu andar, começou a chover. Em geral considerava a chuva como um benção já que com a água que caía dos céus caía também a dádiva da vida, mas neste caso era fundamental que os seus cultivos não fossem prejudicados pelo mau tempo. Desatando a correr, tentou chegar ao seu terreno o mais depressa possível.
Quando chegou, deparou-se-lhe uma cena pungente e trágica: Os outros dois membros da sua família contemplavam, chorando, os seus filhos que, tendo acabado de germinar exactamente naquela manhã, se encontravam mortos pela chuva que, noutra altura, teria sido uma fonte de saúde para eles. Juntando-se ao desespero global, Amlira só pensava, inconsolável, que eles três só voltariam a estar férteis no próximo ciclo da Lua-Mais-Próxima e que, mesmo que tivessem outra ninhada de rebentos como esta isso nunca traria de volta as vidas perdidas inconsequentemente devido ao acaso e ao mau tempo.

Friday, January 05, 2007

Dancin' fool

Todos os frequntadores daquela discoteca ficaram a olhar para aquele dançarino. “Olha aquele gajo a exibir-se!”, “Não era preciso aquilo tudo para mostrar que sabe dançar!”, “Só me apetece dar-lhe um murro!” e “Gostava de saber dançar assim...” eram algumas das frases que circulavam entre os espectadores embasbacados daquela dança frenética, quase acrobática. E o dançarino continuava a rodopiar, atirar as mãos para trás das costas, contorcer o corpo todo, dobrando e triplicando o ritmo da música que. de si, já era rápido.
Finalmente, sempre a dançar, o alvo de todos aqueles olhares invejosos dirigiu-se para a porta e saiu da discoteca. Já no exterior, contiuou a dançar pelo passeio fora e foi-se embora praguejando para si mesmo: “Se apanho o engraçadinho que me encheu a roupa de pós-de-comichão, nem a alma se lhe aproveita...”