Tuesday, July 08, 2008

O Coleccionador de borboletas



Daniel era um homem triste, solitário, revoltado. Não falava muito com ninguém, nem com a sua esposa que era agora a única pessoa que ainda orbitava no seu mundo.
A sua paixão eram as borboletas. Tornara-se coleccionador de borboletas havia mais ou menos 5 anos logo após a fatídica morte do seu filho.
Nos dias a seguir ao estúpido acidente (com um aparelho de asa delta motorizado) que tinha vitimado o seu filho de 16 anos, Daniel tinha-se encerrado num mutismo apenas quebrado para gritar revoltado com os designios do Deus em que acreditava (agora cada vez menos).
Passado algum tempo sem saber muito bem porquê, mas acreditando que era uma espécie de homenagem ao seu filho cujo maior sonho era voar, Daniel começou a nutrir um especial encanto por borboletas e com o passar do tempo tornou-se um verdadeiro conhecedor e coleccionador.
Nesse dia estava a caçar borboletas para os lados de Viseu, relativamente perto do local onde se dera o acidente que envolvera o seu filho. Caminhava pelo campo naquele dia solarengo levantando a cada passo seu dezenas de borboletas, que com o seu olhar conhecedor identificava ... “olha uma Almirante Vermelho... e ali uma Rabo de Andorinha... oh oh oh, aquela ali parecia mesmo uma Flambeau, mas aqui não estava à espera de ver uma menina destas...”.
Enquanto ia andano distraido, reparava pelo canto do olho esquerdo (num gesto tantas vezes repetido durante a caça à borboleta) num exemplar que parecia segui-lo. Não o conseguia reconhecer, mas também ainda não tinha olhado directamente para ela uma vez que estava a estudar o comportamento estranho da borboleta que o seguia sem o largar.
Quando pôde parou e virou-se de repente para ver a borboleta. Era um exemplar bastante grande com umas asas de um amarelo esbatido onde havia traços pretos que formavam uma imagem que não conseguia distinguir com o bater das asas, mas que não se parecia com nada que tivesse visto antes.
A borboleta parecendo adivinhar que estava a ser observada, poisou sobre uma folha bem perto de Daniel e abriu as asas de par em par, e aí o mundo de Daniel desabou completamente. Nas asas da belissima borboleta estava desenhada nada mais nada menos do que uma gravura perfeita da face do seu filho. Daniel sentiu-se desfalecer, mas segurando-se a um tronco de árvore que estava por perto ficou a fitar a gravura que estava na sua frente. As lágrimas corriam pela sua face enquanto estendia devagar as mãos para a borboleta como que para lhe fazer uma festa.
A borboleta levantou voo, sem no entanto voar para muito longe e voltou a poisar mostrando em todo o seu esplendor de novo as suas asas abertas.
Daniel pensou então que tinha que ficar com aquele exemplar para o poder ver todos os dias na caixa onde a iria colocar. Embalsamava-a e assim poderia mostrar a todos que não estava louco.
Preparou a rede e quando já estava em posição de a apanhar apercebeu-se que a borboleta ao fechar um pouco as asas como estava a fazer agora, alterava os traços de modo a que aquilo que era antes uma imagem da face alegre do seu filho, era agora uma cara triste que este fazia. Nesse instante percebeu que algumas coisas são para se deixarem ir e poisou a rede soprando levemente para a borboleta um “adoro-te” que a fez levantar...
Nunca mais viu um exemplar igual, mas também... não era preciso...
Deixou-se de colecções e começou a dar importância a coisas mais importantes.

2 comments:

EMG said...

Pois,
eu nunca percebi essa “coisa” das colecções…e em particular, e ainda com mais relutância, colecção de animais mortos.
Coleccionar para quê?...para guardar… sem nunca mais se apreciar (ou …muito raramente) …só para saber que se tem. Esse sentimento de “posse” complica-me o “sistema”.
Ok…algumas pessoas coleccionam com o objectivo de reunir (e assim, não se perder algo especial (ou que elas acham que é especial (??!!) …e aqui está outro pontos que ainda podíamos discutir)) e assim, mais tarde, mostrar aos outros… mas vejamos este ponto... esse acto de mostrar aos outros é tão raro que me parece que não seja esse o objectivo final dos coleccionadores me geral. E, mesmo este “mostrar aos outros”, sendo o que se chama vulgarmente “exibir”…será”bonito”?
…sendo assim, ficamos (acho!) com “coleccionar para seu prazer”….
Bem…também não tem mal nenhum, quando este “prazer” não colide com outros prazeres de outros seres, como é o dos animais …o prazer de viver…
E quanto bonito é ver o prazer de viver dos animais…por exemplo o voar de uma borboleta, o exibir das suas asas, cores, formas, etc.
Para mim, deveríamos educar, não para coleccionar mas para observar em liberdade o que é belo, e com isso, ter a capacidade de imaginar o que no momento nos “toca”….por exemplo a face de um filho que morreu….

O_Corrosivo said...

Eu cá sou um coleccionador (compulsivo...quase) e discordo de alguns dos pontos de vista que apresentas.
1º Enquanto coleccionador gosto muito de ir (e faço-o várias vezes)rever a colecção ... e que bom que é. E no fundo todos nós o fazemos... coleccionamos, por exemplo, os momentos (mais importantes ou não) em fotografias que revemos periodicamente com agrado.
2º Quantas e quantas vezes mostramos a nossa colecção a alguém , se for o caso, essa colecção até pode dar muito jeito para desenrascar um amigo em apuros... (eu que o diga).
3º Uma colecção pode muitas vezes ser a maneira de nós apreciarmos o que num momento nos toca (como dizias). Eu, por exemplo, colecciono recortes de jornal e um dia ao rever alguns deles descobri um recorte de um anúncio no velho semanário "SETE" a pedir 1 baterista e 1 guitarrista para banda a formar (isto quando ainda tinha aspirações a músico) e adivinhem quem estava na fotografia do anúncio... pois é... o nosso amigo António Variações com uma tesoura a servir de óculos com o seu ar muito "sui generis".
O que poderia ter mudado na minha vida se alguma vez tivesse respondido àquele anúncio que recortei porque achei interessante??? (nem quero pensar nisso!!!)
Mas para finalizar, nunca faria colecção de seres vivos... mortos... nunca iria conflituar com a colecção de qualquer outro ser vivo... matando-o e acabando com as suas hipóteses de continuar a coleccionar o que quer que fosse que ele coleccionava (mais que não fossem... bons momentos!!!).
Apesar de tudo vou "coleccionar" este comentário na minha "colecção" de comentários a este blog (lol)