O meu velho relógio de pulso tinha parado nas 10h59m. Já o tinha sacudido uma ou 2 vezes sem resultado e por isso decidi levá-lo ao velho relojoeiro que vivia 2 portas ao lado da minha casa. Tinha fama de louco mas era muito simpático e cortês com toda a gente. Tipicamente um velhote doutros tempos, era um pouco como se ele próprio tivesse parado no tempo.
Quando lhe apresentei o relógio o velhote sorriu e disse, mesmo sem inspeccionar o mecanismo:
- este já não volta a funcionar. Faça o que fizer, não compre um desses malvados relógios electrónicos.
Pensei que a observação se prendia com o desejo do velhote em manter a sua loja aberta de modo a poder garantir o seu próprio sustento, mas acima de tudo estava bastante indignado com ele por fazer logo o vaticínio de que o relógio já era, sem sequer o abrir. Por isso, aborrecido perguntei ao velhote como é que ele podia ter tanta certeza. O homem olhou para mim e disse
- eu fico-lhe com o relógio e dou-lhe um novo. Com gentileza pegou no meu relógio e colocou-o numa gaveta onde estavam à vontade mais uma centena de relógio parados e ao poisar o relógio carinhosamente no veludo que forrava a gaveta disse
- mais um que conseguiu… é tão raro e tão bonito…
Fiquei deveras surpreso com a frase do velhote e perguntei–lhe o que queria dizer.
Ele explicou-me então que tal como o meu relógio todos os outros que estavam na gaveta eram abençoados porque tinham conseguido chegar à felicidade total. Pensei de mim para mim que a fama do velhote era merecida afinal … era mesmo louco. Não estava era preparado para o que vinha a seguir…
O velhote mostrou-me um por um os relógios da gaveta, enfatuando o facto de todos terem os ponteiros um em cima do outro, todos tinham o ponteiro das horas sobre o dos minutos. O homem passou então a explicar…
- já imaginou o que era estar apaixonado por uma rapariga e durante todo o dia estar ao pé dela, vê-la…, mas apenas poder estar com ela cerca de meio minuto ou melhor 24 segundos. Pois é meu amigo… é o que acontece aos relógios, imagine você que é o ponteiro dos minutos e que a sua amada é o das horas e verá que é verdade o que lhe estou a dizer.
Fiquei a olhar estupefacto para o velhote, que terminou então dizendo
- todos estes conseguiram ser felizes… para estes acabaram-se os encontros fugazes conseguiram o momento perfeito… e por isso vão ficar juntos para sempre. Claro está que se você for perguntar a qualquer relojoeiro de hoje em dia, ele dir-lhe-á que pararam naquele instante provavelmente porque os ponteiros sofreram uma pequena pancada e o atrito entre um e o outro não os deixa movimentar como deve ser, mas isso são explicações da treta.
Olhei para o velho relojoeiro, que agora me parecia muito menos louco do que anteriormente e desde esse dia ando sempre à procura do momento perfeito.
Friday, July 11, 2008
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3 comments:
Muito bonito. Esta loucura é uma ideia muito carinhosa e original.
O "para sempre" enquanto fim último da felicidade é que para mim é discutivel. Então e o "eterno enquanto dura" do VMorais. É sempre mais arriscado do que a cristalização de um momento bonito. Ficar-se-á aberto a outras coincidÊncias.
Mais uma "potencial" amiga, que faz uma visita. Obrigado!!!
Gosto muito de escrever, gosto muito de ler (os comentários e não só), mas sobretudo gosto muito que aquilo que escrevo cause arrepios. Não arrepios de frio, mas arrepios porque algo (ninguém sabe muito bem o quê) no que lá está nos fez estremecer.
Mas confesso, que geralmente são "histórias" não muito pensadas, cheias de incongruências e provavelmente até erros de cariz cientifico (para não falar do ponto de vista literário que...) que são escritas só porque me apetece e nem penso muito nelas... vão maturando.
Mas quando um comentário assim o exige (lol) tento dar uma perninha na "pensação" e neste caso acho que a cristalização de um momento bonito é suficientemente bonito para ser guardado e apreciado para sempre, enquanto o eterno enquanto dura está sujeito à qualidade do que está a acontecer, que se for bom... todos nós (acho eu) gostaríamos que durasse mais...
Fiz-me entender???
Pois!!! Acho que não!!! Por isso é que geralmente me fico por escrever "histórias" e não penso muito ... nelas.
Continuando…
A cristalização de momentos bonitos em cama de veludo, compatível com o conforto de tais preciosidades, traduz uma personalidade engraçada por parte do relojoeiro. É um fiel depositário de coisas bonitas sem necessitar de saber pormenores. O relojoeiro não experiênciou os tais momentos mas agrada-lhe tão simplesmente saber que alguém os sentiu. A loucura (saudável) dele não passará tanto pela associação à coincidência da sobreposição dos ponteiros (que de resto é muito engraçada) porque as coincidências, em si, são vulgarmente assinaladas por muitos. Agora o acto de solidariedade com a felicidade dos outros é normalmente um valor mais raro. Passar cheques em branco pela felicidade dos outros (sem saber pormenores da “conta corrente”) é se calhar a loucura mais bonita do relojoeiro.
Depois, a inexorabilidade presa ao avanço do tempo é, no conto, ultrapassada por uma avaria. Será que és o relojoeiro ou aquele que reuniu forças para enfrentar o tempo?
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