Wednesday, October 15, 2008
Clandestino
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Aquele puto tinha, desde muito cedo, revelado ser diferente. Tinha ideias e queria ser alguém, ter um futuro e não cair nas malhas do bairro.
Desde muito cedo Armando corria pelas ruas de Alfama, sem sequer perder muito tempo a mirar todas as actividades ilegais que ali se realizavam à luz do dia. Jogava à bola na rua, fazia corridas de caricas no passeio junto ao café do Sr. Azevedo e ao "guelas" no descampado ao pé da Rua da Judiaria. Aí é que tinha presenciado muitas cenas tristes que o faziam ter esta opinião tão forte quanto à ilegalidade.
Quando terminou o liceu, acabou como a grande maioria dos rapazes do bairro por se ver alistado na tropa e aí criou uma série de maus hábitos que o levaram de volta ao bairro e para uma vida clandestina de vendedor de substâncias ilícitas.
Mas apesar de tudo "Armandeínho", como o chamava a sua falecida mãe, tinha ainda ideias de mudar o rumo da sua vida e para isso muito contribuia a sua paixão pela guitarra, pelo fado e por Deolinda a fadista mais bonita das redondezas, que todas as 3ª e 5ª feiras ia cantar no barzinho do Zé Texugo.
E foi numa 3ª feira em que foi dormir a casa de Deolinda que a meio de uma "ginástica" mais atribulada, bateu com a cabeça na cabeceira da cama e perdeu os sentidos.
Ao fim de cerca de 2 minutos Deolinda tinha conseguido acordá-lo. Armandeínho acordou sobressaltado e com uma ideia latente (ou batente) na sua cabeça. Ia-se tornar no primeiro empresário de uma nova substância que prometia ser um sucesso.
Deolinda riu-se desalmadamente (até ficar rouca) com a ideia maluca de Armando, ele queria produzir uma mistela qualquer a partir do vinagre que tivesse as mesmas propriedades que o tão afamado Viagra e tinha já até o nome para esta nova substância de origem natural "Vinagra". Era brilhante ... dizia ele... e apesar do riso de Deolinda não abdicava desta ideia.
Foi para casa decidido a pôr esta ideia a funcionar. No dia seguinte ia à farmácia comprar uma caixinha de Viagra para começar a experimentar.
Às 9 horas já Armando estava à porta da Farmácia "Confiança" e com um ar comprometido, mas compenetrado, pediu uma caixa de Viagra para um amigo dele que estava com problemas... não era para ele claro... comentou com o Sr. Fernando da Farmácia que, caso suspeitasse de alguma falha da parte dele, iria logo comentar com toda a gente.
Chegado a casa pegou num comprimido e tomou-o, só para ver o efeito que deveria obter do seu "Vinagra". Nesse dia as revistas que tinha debaixo do colchão tiveram uma rodagem extraordinária e, após sentir que tinha passado o efeito começou então a experimentar misturar várias coisas.
Primeiro misturou um pouco da dose de coca que tinha para vender com vinagre que rápidamente dissolveu o pó, mas passados alguns segundos fez uma efervescência esquisita e criou um depósito branco no fundo do copo com vinagre. Armandeínho bebeu a mistela e esperou pelo efeito.
Passado pouco tempo começou a sentir um calor semelhante ao que tinha sentido com o comprimido de Viagra, só que não era no sítio correcto. Uma corrida rápida para a casa de banho e meia hora de diarreia a seguir já ele estava como novo. Mas do efeito esperado nada.
Desanimado, mas não vencido, lembrou-se das aulas de Fisico-Química em que a professora falava do pH dos ácidos e lembrou-se que o vinagre era um ácido... talvez fosse isso que estava a estragar o efeito. Tratou por isso de procurar nos rótulos de tudo o que tinha em casa para conseguir arranjar uma coisa básica que neutralizasse o ácido do vinagre. A única coisa que descobriu foi o spray para limpar os vidros, deu uma borrifadela e o pó branco redissolveu-se. Pensou então que era mesmo um génio e já tinha conseguido resolver o problema do ácido "arsénico" do vinagre.
Achou também por bem pegar numa série de especiarias e misturá-las para disfarçar o cheiro e sabor do vinagre e da coca. Estragão, manjericão, cominhos, açafrão e canela. Não tinha canela em pó, mas tinha para lá um pacotinho muito antigo que já só tinha escrito Pau de Ca|~^ a... as letras do meio já estavam completamente apagadas, mas pensava que deveria ser pau de canela, por isso despejou o saquinho para dentro do recipiente e esperou um pouco para ter a certeza que faziam efeito.
Ao fim de 2 horas, e porque já estava a ficar tarde para ir acompanhar a sua Deolinda à guitarra no bar do Zé Texugo, experimentou a mistela. Tinha um sabor asqueroso, mas não foram preciso mais de 5 minutos até sentir um grande calor na barriga, que foi descendo, descendo até... eeeeehhhhhhhh... "ganda" efeito... pensou Armando que teve até alguma dificuldade em conseguir dominar o seu amiguinho.
Nesse dia vestiu umas calças largas de modo a poder disfarçar qualquer proteburância que pudesse surgir e depois do espectáculo, mostrou (nos arrumos do bar do Zé Texugo) a Deolinda que afinal a sua ideia maluca resultava.
Levou-a para sua casa e mostrando o frasquinho onde tinha colocado o seu "Vinagra" provou-lhe, ainda mais 2 vezes durante essa noite, que o produto funcionava mesmo.
Desde esse dia tudo mudou na sua vida. Agora à porta do bar do Zé Texugo continua a poder ler-se Deolinda ao Vivo, mas além do anúncio ser agora feito com um neon enorme, tem acrescentado ainda, venha experimentar a bebida da casa o célebre "Vinagra".
Lá dentro Armandeínho, agora Sr. Armando, impecavelmente vestido, vai gerindo a venda da bebida que chegava a vender mais de 300 copos por noite. E nos pequenos intervalos que consegue fazer pensa como era bom ter conseguido fugir às malhas do bairro e ter conseguido um negócio não clandestino que lhe permite viver desafogadamente com a sua Deolinda.
As várias incursões da ASAE ao local para recolha de amostras da bebida foram infrutíferas, uma vez que Deolinda tinha convencido Armando a deixar de colocar cocaína e passar a usar farinha. Quanto ao efeito do "Vinagra", não se sabe bem se é real ou não, porque desde que, acabada a primeira dose e na preparação de mais, Armando tinha utilizado canela em pó o efeito parecia ter desaparecido. No entanto, os clientes do bar do Zé Texugo nunca deram por isso, fosse pela presença da Deolinda ou pelo toquezinho de spray para os vidros... a coisa funcionava.
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