Sunday, October 25, 2015
Mestre Provador
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Os tempos não eram fáceis para ninguém, muito menos para quem por convicção ou incapacidade física não se tinha alistado nas fileiras do exército do rei.
Para Henrique, um franzino homem de 24 anos, todas as hipóteses de conseguir um bom emprego se tinham esgotado, nas mais variadas tentativas goradas de fazer um trabalho pesado, ajudante de ferreiro, aprendiz de carpinteiro, aio de um qualquer cavaleiro da corte do rei, até moço de estrebaria era um trabalho forçado para ele, dada a sua compleição física.
Esta parecia ser uma das suas últimas hipóteses, e tinha agarrado com unhas e dentes, o emprego… “Mestre provador de azeite” da câmara do rei. Estava já no terceiro, e último, dia de treino e seria hoje o grande teste. Durante os 3 dias tinha visto todos os seus colegas/adversários progredirem naquilo que ele achava ser uma farsa e que se prendia com a classificação dos azeites que lhes eram dados a provar. Começava mesmo a achar que não tinha grande jeito para a coisa, e nunca conseguia puxar que chegue pela imaginação para lançar uma daquelas frases bonitas que tão apreciadas eram pelo Mestre provador responsável pelo treino em que participava. Os outros aprendizes de provador conseguiam arrancar uns “bravo” e “muito bem”, mas ele…
Neste momento o colega do lado tinha acabado de ouvir um elogio rasgado quando ao provar o azeite que experimentavam esse dia, e que tinha sido trazido pela filha do azeiteiro mais conhecido da região, dissera – consigo detectar intensidades diferentes de frutos secos quando deixo este fluído precioso escorregar pela garganta, numa primeira impressão parece-me amêndoa, mas após escorrer pela garganta diria que tem tonalidades de noz.
O mestre provador elogiara esta apreciação e prontificou-se a dizer que sentia exactamente o mesmo que se tratava de uma excelente avaliação. A Henrique, o que lhe fazia confusão era o facto de a seguir o colega da esquerda ter reportado um ligeiro amargo com um toque de noz- moscada ou mentolado e ter também ele, ouvido um “bravo”, seguido da respectiva concordância do mestre provador que após mais um breve sorver do azeite reconheceu toda aquela panóplia de sabores e aromas.
E ele…que se passava com Henrique, não sentia nada disso, apenas o sabor a azeite, bom…mas só a azeite. Já tinha feito todos os preceitos ensinados pelo mestre provador, de puxar ar pela boca para sentir o aroma retronasal , já tinha estalado a língua no céu da boca para sentir os picantes e amargos, e nada…
Desiludido…desanimado…ou pura e simplesmente conformado com o facto de não ter hipótese alguma de vir a servir naquele ofício Henrique concentrava o seu olhar na filha do azeiteiro, que devia ser a mulher mais bela à face da terra e era certamente a mais bela que alguma vez tinha visto.
Nesse momento a jovem mulher tinha acabado de deitar o azeite da próxima prova num dos copinhos azuis que utilizavam naquele oficio, e que servia para preservar o aroma e esconder a cor mais dourada ou mais verde do azeite, e acabara de o provar com um graciosidade que só visto, porque descrito se torna ridiculamente vazio. Os lábios da bela donzela traziam ainda o molhado do azeite quando ela se aproximou de Henrique para deitar no seu copo o mesmo azeite. Nessa altura o pobre homem conseguiu sentir o aroma do perfume da mulher e a avalanche de sensações, odores, e outras coisas mais, que nem sequer devem ser descritas num texto desta natureza, fizeram-no sonhar, divagar, e pela primeira vez abrir a boca desde que o treino tinha começado.
- Sinto o odor ao orvalho da manhã num dia de sol quente sobre os prados, sinto tonalidades de erva misturada com fruta doce, sinto ainda o aroma forte de mil flores diferentes pisadas ao de leve, como se quem as tivesse pisado fosse uma fada e tão suave fosse que nem exalavam todo o perfume. Sinto na garganta o doce e amargo ao mesmo tempo, e o picante tudo em simultâneo como se tivesse acesso a todas as sensações apenas com este saborear.
O mestre provador ficou sem palavras. Saboreou de novo de um modo breve o precioso azeite e sem saber muito bem o que dizer, mas não querendo parecer ultrapassado, anuiu e disse
- Bela observação. Não tenho nada mais a acrescentar. Aí está uma definição para este azeite.
Escusado será dizer que Henrique não conseguiu entrar para a câmara de provadores de azeite da corte do rei, mas tornou-se em contrapartida mestre perfumista, conquistou o coração de Isabela a doce donzela filha do azeiteiro mais rico e conhecido da região, e inspirado por ela produziu das fragrâncias mais exóticas e belas que o mundo alguma vez conheceu.
Monday, May 11, 2015
Fugimos?!
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Fugimos?! Disse ele, com aquele ar brincalhão, mas de quem está a falar a sério
- Não podemos – respondeu ela
- Não podemos, ou não queremos?! – tornou ele a dizer, agora já com um ar mais desanimado.
Ela muito aflita começou a passar a mão pela face dele acariciando a barba mal feita e retorquiu
- Sabes que não podemos, não me faças isso, não digas que podemos quando sabes que não podemos
- Poder, podemos é só tu quereres! Foge comigo meu amor! – disse ele novamente de olhos fechados como se estivesse a rezar a um qualquer Deus pedindo o maior milagre de todos os tempos, ou pura e simplesmente tentando evitar que ela visse a lágrima que começou a correr pela sua face.
Ela mais uma vez passou a mão pela cara dele e limpando a lágrima disse novamente
- Não podemos. E tu sabes bem disso! Temos obrigações! Gosto muito de ti, mas não podemos fazer isso. Não era correcto.
Ele disse de um modo decidido
-Se me amas…foge comigo
Ela mais uma vez passou a mão pela cara dele e limpando a lágrima disse novamente
- Não podemos. Adoro-te, mas não podemos fazer isso.
- Foge comigo! Disse ele já num tom mais baixo e de quem já não vai repetir mais nenhuma vez o que acabara de dizer.
Nessa altura, sem explicação plausível, ela pareceu sacudir o mundo para trás das costas e avançou para ele, e colando os lábios aos dele, disse para dentro da sua boca num beijo mudo
- Fugimos!
Nesse instante aconteceu algo raro e belo, o minuto 58 e o minuto 59 das 13horas do dia 18 de Abril de 2014 fugiram juntos e nunca mais foram vistos.
O tempo enquanto entidade como a conhecemos sofreu uma distorção imensa porque faltaram 2 minutos de um dia.
A continuidade do tempo tinha sido quebrada.
Algures no universo, o pobre rapaz, abriu os olhos estupefacto e olhou para a mulher sentada no banco do carro ao lado do seu. Ela era a mulher mais linda do mundo, e com os lábios que tinha acabado de beijar ainda entreabertos, exibia o sorriso mais bonito que alguma vez tinha visto, e pensou.
- Como é possível! Fogo!!! Ainda agora tinha começado a beijá-la e o tempo passou tão depressa. Olhou para o relógio e viu as horas…14h00 do dia 18 de Abril de 2014.
O momento porque tanto tinha lutado e porque tanto tinha esperado passou em breves segundos.
Nunca mais a conseguiu beijar do modo que a beijou naquele dia, e soube a tão pouco!
Algures no universo, abri os olhos e olhei para a mulher que junto a mim lê o texto que eu escrevi.
É a mulher mais linda do mundo, com o sorriso mais bonito que alguma vez vi, e estou a pensar,
- Fogo!!! Nunca tive direito a um momento assim, sentir os teus lábios doces tocarem os meus…
O momento porque tanto tenho lutado e porque tanto esperei nunca chega.
Monday, April 27, 2015
Adromo-te
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- Em que pensas?
Perguntou ela, com um sorriso doce e meigo
- Que não devíamos estar aqui! E que se pudesse parava o tempo para toda a gente menos para nós os dois.
Ela entrelaçou-se um pouco mais em mim e sem largar o velho medalhão ripostou sorrindo com o seu jeito tão próprio
– Mas foi o que acabaste de fazer.
Saboreei o momento como um condenado saboreia o último cigarro e depois perguntei-lhe se achava que estando todo o resto do mundo parado, o que estávamos a fazer deixava de ser errado, sabendo de antemão como é que ela ia responder. E ela não defraudou as minhas expectativas respondendo
– O que é que tu achas?
Como resposta, sussurrei “Adromo-te”, uma palavra só nossa, inventada da necessidade de dizermos um ao outro que o que sentíamos era algo mais que gostar, até algo mais que adorar, era um adorar e amar muito
Levantei o medalhão que ambos tocávamos e disse – Tu decides - e larguei o velho medalhão sentindo de imediato um formigueiro e um torpor enorme que em instantes se apoderaram de mim.
Só tive tempo de balbuciar – Oh! Céus… - e fiquei parado como o resto do mundo.
Para ela bastava-lhe rodar o ponteiro do medalhão para a esquerda e o tempo voltava a correr para toda a gente.
Ciente disto, fez uma festa passando a mão pelo meio da minha testa como só ela fazia e encaixando-se em mim disse
– Prometi-te que ficávamos juntos para sempre - ... e calmamente largou o medalhão.
Monday, March 09, 2015
11h11 no meu relógio
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O ar gingão com que descia a rua indicava bem o estado de espirito que o animava. Assobiava o On top of the world dos Imagine dragons, de um modo estranho, mas que um ouvinte mais experiente conseguia identificar como a melodia que as teclas faziam, no entanto para o comum dos mortais estava desafinado.
Mas nada disso o preocupava, estava exuberante e era um homem com uma missão. A missão era apresentar à mulher que ocupava o seu pensamento nos últimos tempos o que sentia por ela, sem subterfúgios, sem deixar coisas por dizer e sobretudo mostrando-lhe por (a+ b) que o que existia era amor, sim… ele amava aquela mulher como não achava possível amar ninguém naquela fase de vida.
Toda a vida tinha pensado que se um dia se apaixonasse por alguém por quem não se devesse apaixonar, iria guardar esse sentimento para si e viver com ele escondido no seu coração. Mas agora que estava a acontecer, a coisa parecia impossível de concretizar, o sentimento era de tal modo avassalador que guarda-lo só para si era impensável, seria equivalente a carregar o peso do mundo sobre si mesmo. Tinha pensado em não o confessar à sua amada mas pedir a algum amigo (verdadeiro amigo) para o ouvir. Mas na verdade o seu maior amigo, ou melhor amiga, era ela, a mulher por quem agora estava apaixonado. Isso era um problema! Ou então não... Foi este pensamento que lhe sugeriu a solução, falar com ela, era a sua maior amiga, a pessoa a quem tudo podia confessar e agora era o alvo do seu amor.
Parou de assobiar, quando ao olhar para o relógio, verificou que eram 11h11, puxou instantaneamente do seu telemóvel e escreveu uma mensagem para ela em que dizia “são 11h11, em quem pensas? “. Existia uma “crença” quase infantil que partilhavam e que dizia que quando alguém olha para o relógio e as horas e minutos são iguais, alguém que gosta muito de nós está a pensar em nós. A resposta não tardou na forma de uma mensagem também, que dizia “Imagine dragons, aquela música que me mostraste outro dia, adoro-a”.
Para ele este era o sinal decisivo, porque se a música tinha sido apresentada por ele, ela estava obviamente a pensar nele, e isso era muito bom. Escreveu então uma nova mensagem em que transcrevia o início da letra da música “If you love somebody Better tell them while they’re here ’cause They just may run away from you” e enviou. De seguida escreveu -preciso de falar contigo, posso ir ter ao sítio do costume daqui a 15 minutos? A mensagem de resposta trazia um habitual “claro que sim”.
Ao fim de 15 minutos estavam juntos sentados à mesa do café onde sempre se encontravam. Agora o seu semblante já não demonstrava a mesma descontração que antes e demonstrava até um pouco de ansiedade. Mas ele sabia que se conseguisse dizer tudo como tinha imaginado ela iria perceber perfeitamente onde ele queria chegar. Tinha escrito num papel e preparado um discurso que pareceria uma completa parvoeira a quem o ouvisse e só a ela diria algo, isto uma vez que desde que se tinham conhecido que havia uma grande cumplicidade que partilhavam através de nomes de músicas e nomes de grupos musicais cuja música que ambos pensavam quando era enunciado era a mesma. Começou então por lhe dizer:
- Sabes que “Paul Young”, deixas-me “Cesária Evora” . Existe “Naked eyes” de ti. “Pet shop boys” nestes últimos tempos, “Lenny Kravitz” porque “Incubus”. Beatles porque além de Queen, Sinnead O’Connor e existe algo que te quero dizer, que é…
Nesta altura a voz dele tremeu e ela aproveitando a quebra colocou calmamente o dedo nos lábios dele como que a dizer-lhe que não falasse, e aproximando os seus lábios dos dele deu-lhe um imenso Prince e completou dizendo Marisa Monte.
Dizem as más-línguas que saíram tão abraçados do café que não havia nome de música nenhuma que conseguisse descrever aquele par. Mas que de certeza que ambos se sentiam muito Imagine dragons era bem óbvio.
Enquanto escrevia este texto eu próprio olhei para o relógio do meu PC e verifiquei que eram 00:00 (mau hábito escrever sempre fora de horas). Em quem pensavas?
Friday, February 06, 2015
A luz do meu pai
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E zás … esta era a última pincelada no meu mais recente quadro. O tema … bem, o tema era o mesmo de sempre: “as cores”. Tudo se resumia às cores. As cores das coisas, como eram diferentes por causa da luz, e da maneira como nós as víamos e percepcionávamos.
Lembrava-me sempre do dia que tinha influenciado tudo o que eu era, e sou. A razão da minha incessante busca das cores e da luz perfeita. Influenciara a mim e aos meus irmãos, que apesar de não o admitirem com a mesma frontalidade que eu, sabiam muito bem que tudo começara ali.
Naquele dia, devia eu ter para aí uns dez anos, numa das muitas viagens de carro que fazia com o meu pai e irmãos, decidi perguntar ao meu pai uma coisa que me andava a preocupar há muito tempo, e que a escola em vez de esclarecer, parecia ter vindo complicar ainda mais o pouco que eu percebia do assunto.
- Pai - comecei eu - o preto é a ausência de cor, não é?
Ele calmamente, respondeu que sim, e eu continuei:
- Então quando não há luz, as coisas perdem a cor, não é?
Nessa altura, ele sorriu com aquele sorriso enigmático e começou a responder:
- Bom, filhota, as coisas não perdem a cor no escuro, apenas não as consegues ver.
- Então quando se liga a luz voltam a ter cor? - perguntei eu.
- Não fofita, elas nunca deixaram de ter cor, nós é que não a vemos porque não há luz. É um bocado como acreditar em Deus, acreditas apesar de não o veres - disse ele sorrindo.
Mas eu ainda não estava convencida, e as dúvidas acumulavam-se. Perguntei então:
- Como é que tu sabes isso?
Calmamente, ele disse:
- Bom, as cores que nós vemos são o resultado da maneira como os nossos olhos captam as radiações que os objectos reflectem quando uma luz incide sobre eles. Sendo assim, se não houver luz, os nossos olhos não podem captar nada porque os objectos não reflectem nada. Isso não quer dizer que o objecto deixe de ter cor. Quando a explicação do meu pai ficou mais séria e científica, o meu irmão mais velho (que era doido por tudo o que fosse ciência) ficou logo atento e perguntou:
- Então se nós pudéssemos ver no escuro as coisas tinham cor?
Nessa altura, o pai sorriu ainda mais e disse:
- Boa, deste-me uma boa ideia para explicar este assunto. Imaginem que em vez de vermos um objecto que à luz do sol reflecte a cor vermelha, com luz do sol a incidir sobre ele, o víamos com uma luz verde a incidir sobre ele. Acham que íamos ver a mesma cor? A nossa resposta foi imediata.
- Claro que não, pai!
- Pois, é por isso mesmo … é que a maneira como o objecto reflecte depende da luz que incide sobre ele.
Nessa altura, a conversa tinha-se tornado demasiado técnica para mim e desesperada comentei:
- É mesmo preciso acreditar, porque me parece tudo muito esquisito. Então o meu irmão mais novo, refez a pergunta que eu tinha feito.
- Então papá, como é que todos os dias quando volta a luz, nós vemos coisas com cores?
O meu pai respondeu instantaneamente, sorrindo:
- Olha pequerrucho, acho que tu não consegues perceber pela ciência, não consegues acreditar em algo que não vês, portanto vou ter que te dizer a verdade só a ti. E piscando o olho para mim e para o meu irmão mais velho, disse:
- Todos os dias antes de se levantarem, eu pinto tudo outra vez, para não viverem um único dia num mundo sem cor, porque gosto muito de vocês. Calámo-nos todos e ficámos a olhar para ele com admiração e nunca mais este assunto foi tocado.
O meu irmão mais velho é hoje em dia um físico de renome, estuda os fenómenos da reflexão e refracção da luz. O meu irmão mais novo, tornou-se escritor, é o autor de vários romances best-sellers em que reflecte sobre o acreditarmos em algo que não vemos. E eu, bem… eu pinto, e todos os dias tento pintar de novo todas as cores como o meu pai disse que fazia por nós. Espero que o meu pai goste deste quadro que acabei de pintar agora mesmo e que se chama “A luz do meu pai” e, de onde quer que ele esteja, possa dizer-me se vi a cor com os mesmos olhos que ele e sob o efeito da mesma luz, a luz do meu pai.
Wednesday, January 21, 2015
O que tem de ser, tem muita força
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A amizade entre os dois era recente, mas muito forte. Tinham-se apoiado muito no trabalho, falado muito das coisas da vida, partilhado muitas palavras e pensamentos, até feito planos como se um dia fossem realiza-los juntos, mesmo sabendo que a vida dos dois que existia fora daquela estranha amizade jamais o permitiria.
Ambos tinham companheiro e não equacionavam a hipótese de isso alguma vez deixar de ser assim.
Pelo meio tinham havido muitas maluquices ditas, no abuso de quem está a dizer algo como um amigo, mas que na realidade puxa o conceito de amizade um pouquito além.
Havia sorrisos trocados que nunca deveriam ter sido partilhados daquele modo, havia festas no rosto, havia um passar de mão na cabeça, ou uma atenção extra, mas sobretudo havia muita vontade de falar. E falou-se de tudo, do que se tinha feito, do que se sonhava fazer, até do que não se conseguia fazer no presente e se poderia alcançar...se tudo fosse diferente. E até em momentos mais arrojados tinham na brincadeira perguntado um ao outro se seria tudo diferente se a diferença fosse cada um na vida do outro.
Sabendo que nunca ia acontecer nada entre eles, ele desafiava-a várias vezes para aquilo que chamava de um modo engraçado do “dia da sinceridade absoluta”. Um dia em que iriam levar até ao fim as conversas todas, sem refúgios na vida que tinham, nem na imponderabilidade da amizade, nem na aparente irresponsabilidade juvenil que ele tão bem usava para puxar o limite do que dizia ou fazia, enfim…ia ser um dia em que não ficaria nada por dizer.
Por várias vezes já tinham agendado o célebre “dia da sinceridade absoluta”, mas umas vezes por uma razão outras vezes por outra, até agora ainda não se tinha realizado. Uma vez após uma sessão de clips atirados para a zona onde ela estava a trabalhar como modo de chamar a sua atenção e ao mesmo tempo ver a reacção dela, até chegaram a começar o “dia da sinceridade absoluta” para tentar perceber o que se estava a passar porque não lhes parecia muito normal que estivessem a comportar-se como dois jovens à procura da atenção um do outro, queriam tentar entender o porquê daquele comportamento. E sentaram-se à frente um do outro com uma chávena de chá quente a mediar a conversa. E as perguntas ainda começaram a ser feitas e as respostas a serem dadas.
Ele pediu, sem pudor, que ela imaginasse que o seu companheiro nunca tinha existido e se nesse caso achava que ele era um companheiro à altura. A resposta dela foi tal, que ele continuou perguntando e esperando a reacção dela, mas infelizmente dessa vez ainda não ia ser o dia, porque uma falha de electricidade veio estragar o momento e depois, bem…depois já não era a mesma coisa.
Mas o estado de desespero de cada um deles vivido do modo que lhe era peculiar e o dos dois em conjunto quando estavam juntos, era já notório e até já começava a ser comentado por outros que vendo a situação de fora se apercebiam de algo, mas sem conseguirem pôr o dedo na ferida sobre o que se estava a passar apenas comentavam e bichanavam quando os viam juntos.
A vontade de estar longe desses rumores, olhares de esguelha e tudo o mais levou-os nesse dia frio de Dezembro a uma esplanada onde se sentaram a beber um café em vez do habitual chá. Começaram a conversar e naquele momento acharam que aquele era o afamado “dia da sinceridade absoluta”.
Ele recomeçou as perguntas à mulher que à sua frente se sentava, ciente de que agora que tinha começado aquela conversa, já não podia voltar para trás.
Começou por a alertar que gostaria que o que quer que fosse dito naquele dia não fosse motivo para estragar a amizade que os unia. Na esplanada soava a canção “Seja agora” dos Deolinda e ele achou que as palavras que a vocalista cantava eram tudo o que ele lhe queria dizer. A música entretanto parou, ele levantou-se e dirigindo-se até ao dono da pequena esplanada pediu-lhe se podia por a música a tocar outra vez, uma vez que tinha terminado e ele ainda precisava de um pedacito mais. Quando se sentou de novo, fechou os olhos e começou a recitar
Nós havemos de nos ver os dois
ver no que isto dá
ficar um pouco mais a conversar
Ter a eternidade para nós
Quem sabe, jantar,
Se tu quiseres pode ser hoje
Não chegou a recitar o resto da letra porque entretanto os lábios dela encontraram os seus e calaram o resto. Depois de o beijar prolongadamente ela completou
Tem de acontecer, porque tem de ser
e o que tem de ser tem muita força
E sei que vai ser, porque tem de ser
Se é p’ra acontecer, pois que seja agora
Se fosse num filme, ter-se-iam levantado os dois e num abraço imenso teriam dançado até a música terminar num movimento harmonioso e ensaiado, mas como era a vida real repetiram o beijo e levantaram-se saindo abraçados em direcção ao futuro, e não fosse o coitado do dono da pequena esplanada ter corrido até eles a dizer que se tinham esquecido de pagar os 2 cafés, até parecia mesmo o final de um qualquer filme romântico.
Monday, September 30, 2013
A Fotografia
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Estava uma daquelas manhãs que me fazia sentir um mentiroso compulsivo quando cumprimentei o vizinho da frente com um cordial “Bom dia”.
Não havia motivo nenhum para lhe chamar bom, o céu estava farrusco, cinzento mesmo, e a chuva caía com uma intensidade tal que parecia justificar porque é que a água cobre quase 71% da terra e parecia mesmo querer passar a cobrir 72%.
Entrar para o carro com os miúdos era uma aventura diária, mas em dias como este revelava-se uma verdadeira luta pela sobrevivência.
Mas depois de conseguida, tinha o doce sabor da vitória e a recompensa do silêncio a que o temporal os remetia. Não sei se era a falta da luminosidade ou a distracção das linhas da água da chuva nos vidros do carro, mas o que é certo, é que ficavam calados e a viagem até à escola era sempre muito calma.
Nesse dia porém, estourou uma imensa trovoada, e ao primeiro relâmpago ouvi o ruído de fundo no banco de trás aumentar de imediato.
Ao segundo relâmpago ouvi a conversa estalar entre a população do banco de trás. E quando ao terceiro relâmpago dei uma espreitadela rápida para trás (para não me distrair na minha condução), vi algo que não estava preparado para ver.
No banco de trás trazia três seres lindos com o sorriso mais rasgado do mundo e que apesar de parecerem muito tensos, mantinham esse mesmo sorriso a grande custo, denotando no entanto a tensão que a tempestade lhes transmitia.
Já a olhar de novo para o meu caminho, lancei para o ar um pedido de explicações na forma de um
– Porque é que estão tão sorridentes? Qual foi a piada? Porque estão a arreganhar a tacha?
A mais velhinha começou a falar e disse:
- Lembras-te pai, quando há uns tempos eu tive medo dos relâmpagos? Eu disse aos manos a mesma coisa que tu me disseste!
Fazendo um esforço inglório para me recordar de como tinha justificado a existência dos relâmpagos de um modo menos teórico do que ”é o resultado de uma descarga eléctrica entre a nuvem e o solo”, acabei por pedir para contarem o que era então um relâmpago.
Nessa altura foi o mais pequenito que avançou com a explicação que tinha ouvido e absorvido da irmã :
– Então pai, já não te lembras que os relâmpagos são o flash da máquina fotográfica?
A minha pergunta subsequente foi tão rápida que nem tempo tive para relembrar o que pudera ter dito em tempos:
- Então e quem está a tirar as fotografias?
A explicação do mais pequeno veio com a mesma rapidez,
– É Deus, claro! Por isso estamos a sorrir tanto para ficarmos bem na fotografia e tu devias fazer o mesmo papá!
Foi uma das viagens mais divertidas da minha vida. Sorrimos e rimos a bandeiras despregadas e estou plenamente convencido que se Deus estiver mesmo a tirar fotografias não devemos ter ficado nada mal.
O pior são aquelas fotografias em que nos apanha desprevenidos porque não usa flash!!!
Sunday, January 20, 2013
Todos juntos...
- "A vida não é só o rastejar dos segundos ao longo do dia", disse um enquanto esperava sentado em frente à parede.
- "Nem pode ser só ouvir a Professora o dia todo, minuto atrás de minuto", disse uma voz à sua direita, com um chapéu de burro.
- "Muito menos é feita só para dormir ou para comer os vegetais", disse o outro vulto à sua esquerda, com as mãos vermelhas das réguadas.
- "A vida devia ser feita para brincar" - disse o terceiro vulto mais pequeno, com uma voz triste
- "A vida é feita de tudo não é? Então também tem de ter essas coisas" disse uma voz atrás de nós "E definitivamente a vida não é só brincar" continuou ela, "Como vocês 4 irmãos estão sempre a fazer, mesmo na sala de aula".
- "Mas Professora" disse a primeira
- "sempre nos disse que não há nada" continuou o segundo
- "mais importante que a família" prosseguiu o terceiro
- "nem que os fazer felizes" finalizou a quarta
-"E era isso que estávamos a fazer, Professora" disseram eles, "A fazer-nos uns aos outros felizes..."
E depois disto...ficaram até depois da aula em frente à parede, todos juntos e apesar de tudo...felizes
Sunday, August 15, 2010
Um saco de pipocas
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Como sempre ia levar as miúdas à escola antes de ir trabalhar, só que hoje era um dia absolutamente crucial na sua vida profissional porque ia ser o mediador das negociações entre o director da empresa e o novo accionista maioritário.
Ia a pensar como conduzir o processo, mas as miúdas lá atrás não se calavam um segundo. Era já a terceira vez que tinha que quase gritar para se fazer ouvir.
- Meninas calem-se – disse mais uma vez – deixem o pai pensar…
A mais pequenita das miúdas começou então a cantarolar:
- Segunda-feira fui à feira, terça-feira fui feirar, encontrei um burro morto para o primeiro que falar.
Como que por magia, as outras duas miúda calaram-se e o resto da viagem foi um sossego. Pelo menos até chegarem ao destino. Quando perguntou à mais velhinha o que se tinha passado esta respondeu-lhe que quando se dizia aquela cantilena as outras pessoas não podiam falar porque senão ficavam com o burro morto. O homem sorriu e deu um beijo a cada uma delas e deixou-as saírem a correr para ir para as aulas.
No resto do caminho engendrou uma maneira de conduzir a reunião e preparou-se para o bem e para o mal.
Infelizmente apercebia-se agora, que a coisa tinha ido mais pelo lado do mal e estava com uma enorme dificuldade em fazer com que as duas partes interessadas se ouvissem, quanto mais que se entendessem. O Director falava já bem alto sem deixar lugar a argumentações por parte da outra parte, que também já bastante exaltado gritava com o director dizendo que agora era ele quem mandava porque era o sócio maioritário.
Em situação de desespero e sem saber como calar aqueles dois pelo menos durante uns segundos para que parassem e se ouvissem, começou a cantarolar bem alto
- Segunda-feira fui à feira, terça-feira fui feirar … - gaita, já não se lembrava do que vinha a seguir.
Para seu grande espanto o director terminou a frase dizendo – encontrei um burro morto- e em uníssono disseram os dois adversários – para o primeiro que falar.
O silêncio a partir desse instante foi total. Pôde finalmente ajudar os dois homens a ouvirem-se e a entenderem-se, e a reunião foi um sucesso.
De caminho para casa comprou um grande saco de pipocas para as filhas e quando as foi buscar à escola antes mesmo que elas começassem na berraria do costume ofereceu-lhes as pipocas o que as manteve caladas a viagem toda.
Saturday, July 03, 2010
A Necessidade é a mãe da Invenção!!!
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Valdemar era um tipo bestialmente infeliz. A sua relação com o seu patrão era a maior razão para essa infelicidade, mas não era a única. O patrão, de seu nome Toni Nunes, era conhecido pelos subalternos por “Ambulância” ( o que facilmente entenderão ao dizer o nome do dito em alto e bom som… pois é… parece mesmo o apito de uma sereia de ambulância ou de um carro de bombeiros) e era um homem temido pelo seu ar autoritário e diziam as senhoras uma presença intensa.
A última invenção do “Ambulância” para fazer parecer que na empresa eram todos grandes amigos, tinha sido a criação de um torneio de futebol com uma equipa de cada um dos departamentos.
Valdemar estava agora a braços com mais uma das cretinices do seu chefe, que o tinha incumbido de ser o organizador daquela farsa toda, além de ficar como treinador da equipa da direcção em que jogava o “Ambulância” e onde na realidade o próprio exercia o cargo de treinador, habituado que estava a mandar em tudo e todos.
Foi num intervalo de um dos jogos que o curso da história da vida de Valdemar se modificou. Quando se sentou na sanita da casa de banho dos balneários (local favorito para se esconder do “Ambulância”) Valdemar estava longe de imaginar que aquele era o instante fulcral da sua vida.
A enorme pressão que sentia na barriga, precisava já de ser aliviada e segundo o habitual ritual, ao mesmo tempo que soltava uma sonora rajada de gás dizia em surdina com satisfação – Este é para ti Ambulância.
Após ter satisfeito as suas necessidades, Valdemar começou a puxar a pequena tira de papel que se encontrava pendurada do contentor de papel higiénico. Para sua grande surpresa e maior irritação, verificou que apenas havia um único retalho de papel. Exclamou bem alto – Porra !!! Não há papel!!!
Bramando contra tudo e todos (mas sobretudo contra Toni Nunes que era sempre o culpado de tudo, na sua opinião) acabou por ter que se limpar, mal e porcamente, com apenas um retalho do papel higiénico. Este acontecimento fê-lo pensar que isto deveria acontecer muitas vezes a muita gente e era muito desagradável. Talvez, pensou ele, fosse possível utilizarem no final do rolo uma cor diferente no papel higiénico de modo a que qualquer utilizador soubesse que o rolo estava quase a acabar e assim pudesse de um modo prevenido procurar outra casa de banho onde ainda houvesse papel.
A ideia fermentou, várias semanas na mente de Valdemar que entretanto, farto de aturar o “Ambulância”, se despediu e em parceria com o ex-colega, e agora sócio Nando Tinto, abriu uma empresa de fabrico de papel higiénico.
A ideia foi rapidamente considerada como standard da indústria do papel higiénico e nem grandes marcas como a “Renova” puderam deixar de utilizar o que os técnicos chamavam de “degradé de Valdemar”. Desse instante em diante, Valdemar, agora conhecido como Engº Valdemar, tornou-se um homem de sucesso, inventor, e empresário do ano, deixando de ser o lambe-botas de Toni Nunes.
Ainda hoje em dia Valdemar pensa na sorte que teve em não haver papel naquela casa de banho e diz com um sorriso nos lábios a quem o quer ouvir que a necessidade é a mãe da invenção.
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